14março
Não podemos negar que, na cultura ocidental, deparamo-nos com o distanciamento para com o corpo sensível. Esse corpo que sente, que fala, registra, e que não é “por acaso”, é silenciado ou conduzido como um outro-diferente-de-mim.
Voltando à Idade Média, podemos encontrar dados que demonstram a sacralidade do corpo humano. Naquele período, acreditava-se que o corpo continha o espírito, e por isso, as torturas objetivavam alcançar esse espírito, como punição. Do mesmo modo que, por exemplo, não permitiam a abertura desse corpo humano para torná-lo objeto, visto que “abrir o corpo era bulir no espírito”: noção de corpo sagrado. (Rodrigues, 1999)
Com o passar do tempo, René Descartes nos convidou a um outro olhar: o corpo como algo distinto da mente/alma. E, a partir de então, era tolerada a abertura desse corpo para torná-lo objeto de estudos, de compreensão e de controle. Se por um lado foi importante para o desenvolvimento da ciência, por outro, a percepção de um corpo-máquina foi tomando espaço, e para isso “foi necessário desencantar o corpo”, como diria Rodrigues (1999).
Hoje, podemos ver que ainda há o desencanto derramado nos corpos pretos, que são negados em sua sensibilidade e humanidade; a medicalização excessiva da dor e do sofrimento, em que há um imperativo de consertar as tristezas; e a presença de um corpo que produz e que precisa continuar produzindo apenas.
De acordo com Alexander Lowen, “terminamos por ver o corpo como uma máquina, então perdemos o contato com seus aspectos vitais e sensitivos”. Com isso, podemos ser e estar no mundo de maneira anestesiada. Conseguimos sentir o que estamos sentindo?
Por isso digo: por uma estesia, na medida do possível. Diferente de anestesia, a estesia é a capacidade de perceber sensações, segundo o dicionário. Assim, amplia-se a noção e a vivência de si. Crescemos em tamanho e perspectivas.
Que possamos nos estesiar, na medida do possível. Porque nem sempre é possível se aproximar de um corpo que tem história e cicatrizes. Nem sempre é à toa o tal distanciamento, saibamos. Mas pode ser um processo de bonita expansão e fluidez, criar um chão para acolher a própria pele dolorida.
"Não tenho ensinamentos a transmitir. Tomo aquele que me ouve pela mão e o levo até a janela. Abro-a e aponto para fora. Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo." | Martin Buber