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11janeiro

O VENTRE DO TERAPEUTA

De Virginia Gawel

 

É a hora.

O paciente chama à porta.

Como o cozinheiro que pendura o avental no cabide para receber visitas, o terapeuta pendura no cabide seus problemas pessoais. Desenvolve a habilidade para deixá-los de lado, porque quem vem irá precisar dele em estado de ATENÇÃO PLENA.

O que será que o paciente irá encontrar caso tenha achado um bom terapeuta?

– Alguém que desde o momento em que assumiu sua vocação (ou antes, bem antes) trabalha todos os dias com suas próprias emoções, as suas próprias dores, seus erros de critério… Se empenha em compreender mais além do entendimento, tomando o cotidiano como uma escola.

– Alguém que, sim, se formou academicamente e em estudos de pós graduação, e tem livros espalhados por todos os cantos… Mas, se for mesmo um bom terapeuta sabe que isso não é tudo: entrará na sessão oferecendo ao seu paciente algo precioso, que é o seu próprio inconsciente. O inconsciente do terapeuta funciona como quando alguém recebe em seu ventre a gestação de um filho alheio; chocará, com as ferramentas que esse terapeuta tenha, a identidade de seu paciente: suas dores, seus relatos oníricos, seus anseios, suas histórias. Quando for dormir, sonhará não só com seus próprios assuntos, mas também entre os bastidores dos seus sonhos aparecerão respostas para João, para Marieli, para Selene… E, saiba ou não, esse labor noturno sairá da sua boca com a pergunta justa, o gesto oportuno, o olhar mais amplo que seu próprio inconsciente o tenha provido amassando a farinha das horas do consultório…

– Um bom terapeuta às vezes oficia de dialisador do seu paciente (como quem, tendo insuficiência renal, se conecta a um aparelho que limpará seu organismo) quando vem cheio de ira, de dor, de impotência, de medo, o terapeuta lhe oferece não só o respaldo de seus conhecimentos (necessários, certamente!), senão também seu próprio coração ferido, seu coração equivocado, seu coração emendado, seu coração em vias de desenvolvimento (como o de qualquer um). Desde seu treinamento em lidar com seu próprio caos, ajuda a pôr em ordem o caos alheio. Instala luz onde tinham penumbrosos pesares. E quando chega em casa, às vezes chora. Sim, tenho que dizê-lo: às vezes chora uma dor que não é dele. Porque ama. Ama seus pacientes. Ama aos humanos. E doe nele a dor dele. E está bem que assim seja. Nem “transferências” nem “contratransferências”: é algo mais fundo; ali depara-se à sós com o Mistério da Vida, sendo nada mais que um humaninho (assim, em diminutivo). E isso chama o silêncio.

Com ferramentas do operário interno trabalhará esse pesar alheio para não carregá-lo sobre sua própria vida. Porque assim, como quando visualizamos uma cascata de água fresca num lugar luminoso, mobilizamos neurotransmissores que geram relaxamento, expansão, bem-estar, o terapeuta visualiza muitas horas por dia histórias de abuso, de maltrato, de perdas, de sofrimento. Deverá auto-dializar-se e pedir ajuda, trabalhando diariamente para saber, no íntimo, que somos todos Um, mas que cada qual necessita transitar sua própria experiência humana. E o progresso do seu paciente também marcará seus dias, aumentando sua confiança na vida.

Não é raro que um bom terapeuta muitas vezes não saiba o que fazer perante um paciente. Esses costumam ser os melhores. Os que tudo sabem costumam andar perdidos num labirinto de ideias. Mas quando temos ao outro a peito aberto e em carne viva, saber que não sabemos é o princípio do acompanhar a viver. Acudirá, então, a seu modesto tabuleiro de ferramentas – e como dizia Maslow – “se a única ferramenta que você tem é um martelo, para você tudo começa a se parecer com um prego”. Aplicará aquilo que sua experiência lhe diz que é a mais útil. E seu próprio inconsciente, na confiança, estará em permanente diálogo com o de seu paciente, porque são ambos inconscientes os que melhor sabem para onde devem ir.

– Um bom terapeuta deve ter uma vida simples; precisará fazer um voto de coerência, porque o padeiro dá pão, o fruteiro a fruta, mas o terapeuta se dá a si mesmo. Será consciente do quanto pode, do quanto não. Praticará a modéstia de poder admitir suas limitações. Falará com seu paciente em palavras que o outro compreenda. E será, essencialmente, um ser humano.

– Se o paciente lhe preguntasse: “Seus pais vivem?”, a maioria dos bons terapeutas não responderão com outra pergunta, devolvendo: “O que você acha?”. Poderá olhar seu paciente aos olhos, e dizer, por exemplo: “Meu pai sim, mas minha mãe passou pelo mesmo processo que a sua; sei o que se sente como filho”. O terapeuta como humano ignorado pelo seu paciente é um paradigma que vai ficando para trás. Precisam-se de homens e mulheres corajosos que possam dar-se a conhecer àqueles que desnudam a alma perante eles.

E, chegando ao fim, ambos poderão olhar-se frente a frente e dar-se um abraço. Porque o bom terapeuta costuma abraçar (ainda que na faculdade muitos professores tenham ensinado que isso não é bom). Sabe que o abraço, o olhar de frente, o ficar exposto como humano perante outro humano, não tira nada dele, e sim dá. Lhe dá um vínculo entre duas pessoas que, em meio disto tão difícil que se chama “vida”, procuram avançar dignamente, transformar a dor em parir (no sentido de “dar à luz”), e desdobrar o que está acuado, escondido para que a Terra conte com outra pessoa mais capaz de ajudar o Todo.

Quando pago a meu terapeuta, esse dinheiro é um símbolo de valorização não só de seus saberes, não só de seu cérebro treinado, não só de suas supervisões, seus cursos de pós-graduação e seus livros. É um símbolo de que me há oferecido uma porção de seu inconsciente para que eu possa desembaraçar o meu; em seu ventre gesto uma porção de mim para poder gestar-me em meu ventre invisível.

Isso é um terapeuta: um ‘humaninho’ incompleto que vai se completando graças a cada paciente. Uma pessoa que se dá.

Um modesto operário do espírito.

(Tradução não autorizada – de Hugo Ramón Barbosa Oddone)

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"Não tenho ensinamentos a transmitir. Tomo aquele que me ouve pela mão e o levo até a janela. Abro-a e aponto para fora. Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo." | Martin Buber