20abril
Há alguns anos sonhei que visitava um zoológico. Ali, eu ainda estava na escola e transitava, juntamente com colegas, por entre onças domesticadas, silenciadas e destituídas da selvageria. Naquele espaço, olha só: fizeram dos bichos, mansidão.
Depois do cansaço de, cotidianamente, serem vistos com desimportância e tratados enquanto objetos, houve rebento, quebra, rompimento com a expectativa do ser manso. As onças reagiram. E o público corria, tentando se proteger da ferocidade e dando-se conta, ao mesmo tempo, de que o selvagem chegou arrastando todo mundo pro reconhecimento da força e do poder de uma onça. E, assim, cada onça foi lembrada em sua substância com o respeito que faltava.
Eis que, após o sonho, me encontro com a imagem do final desse texto. Pensei: precisamos recordar de dar passagem ao bicho em nós, quando preciso. Ocupando o nosso espaço, defendendo nossos territórios, limitando entradas violentas e invasivas, gritando o nosso não, quando preciso. Transgredindo a mansidão e a docilidade esperadas, sem construir o grande moinho da culpa.
Sentir o bicho em ti, pode ter um gosto amargo bem desagradável, porém mais desagradável pode ser viver em um corpo plastificado, que só pode sentir até ali. Deixa o bicho lamber tua pele, limpando o que te afasta dos gestos próprios, dos movimentos próprios, da sua potência, das verbalizações necessárias.
O bicho em nós precisa ter lugar também. Assim, a gente pode povoar nossa vida dos encantos, das vivências, das buscas que fazem sentido. Sem o bicho, gente, não dá nem pra mastigar uma comida, não dá nem pra sair da cama querendo o dia que chega. Sem o bicho, não é possível endereçar as vontades, nem firmar nossa verdade no mundo. Deixa o bicho lamber. Deixa lamber.
[a arte é de Guillermo Lorca García]
"Não tenho ensinamentos a transmitir. Tomo aquele que me ouve pela mão e o levo até a janela. Abro-a e aponto para fora. Não tenho ensinamento algum, mas conduzo um diálogo." | Martin Buber